Coisas de que ninguém fala: Quando a ligação não é imediata

É suposto ser amor à primeira vista, mas cerca de uma em cada cinco mães sente que não está a conseguir relacionar-se com seu bebé, sentindo-se pressionada, envergonhada e, de alguma forma, errada e quebrada.

Posso dizer-vos, por experiência, que serão poucos os novos pais com as expectativas do impacto de um novo membro da família bem niveladas. Está certo que toda a gente fala sobre esgotamento físico e mental, mas chega-se ao nível em que já não é só “esgotamento”, mas sim “O esgotamento”. A constante atenção que os recém-nascidos exigem não deixa grande tempo para atividades individuais ou de relacionamento que nós necessitamos; e quando deixa, pomos o nosso descanso em primeiro lugar ou, se a coisa estiver mesmo negra, nem descansar conseguimos, apesar de tentarmos. Diria que, mesmo quem antecipe todos estes desafios raramente veja a real intensidade dos mesmos.

Este post não tem como objetivo assustar novos pais, grávidas ou quem está a pensar ter filhos; tem sim, como finalidade, preparar-vos melhor. Porque tudo é ultrapassável se tivermos a aldeia pronta para a criança. Há tantos pontos que pesam – o sono, a alimentação, a companhia, etc. – que não devemos encarar isto de ânimo leve.

Da minha primeira gravidez, senti a ligação à minha filha ainda durante a gravidez. Sentia-me bem grávida, as semanas passaram tranquilamente, tinha energia e motivação. Claro que quando ela nasceu, principalmente nos primeiros 3 meses, houve muitos momentos em que me apetecia deixá-la em casa e ir à minha vidinha, principalmente regressar ao trabalho. Não só faz parte, como eu sou uma pessoa que precisa de ter espaço para si (um espaço adulto, leia-se). Mas, mesmo nessas alturas, nunca deixei de me sentir ligada a ela.

Da segunda gravidez, nada disso. Senti-me grávida e cansada (mais a partir do meio da gravidez), sem qualquer vontade e mais deprimida. Pensava frequentemente em como iria conseguir fazer as atividades divertidas que já fazia com a minha filha mais velha quando estivesse sozinha em casa, com ela e a bebé.

Nisto tudo, nem o parto ajudou. Do primeiro, parto normal com episiotomia. Tudo bem, uns pontinhos chato e umas hemorróidas mais chatas que os pontos, mas a coisa foi ao sítio. Da segunda, cesariana. Esqueçam, não houve um único dia em que quisesse estar com pessoas nas primeiras 3 semanas após o parto. Ainda tenho algum desconforto e sinto-me num corpo que não é o meu com mais frequência do que o desejável.

O pior de tudo é ainda não sentir a ligação maternal instintiva à minha filha. Desculpem, “instintiva”. Posto isto, e depois de me sentir num poço muito fundo durante estas longas semanas, pesquisei um pouco – não porque me apetece dar uma de psicóloga ou psiquiatra, mas porque tenho que ver que não estou sozinha e que isto, de facto, acontece a mais gente.

Digo-vos que não é fácil e que, pelo caminho, perdi confiança numas pessoas e talvez tenha ganho noutras. Faz parte, mas cuidado se forem obstáculos instransponíveis sozinha.

Encontrei vários relatos de outras mães que sentiram o mesmo que eu. E confesso que fiquei aliviada.

Casos em que a gravidez foi planeada ao segundo e que a gestação foi feliz, com esse sentimento de ligação entre a mãe e o feto, deram depois em casos de baby blues ou depressões pós-parto. Encontrei alguns estudos que nos dão uma visão mais clara disso, indicando mais concretamente que há várias mães e gestantes que sofrem de distúrbios de stress pós-traumático (DSPT) relacionados com a ligação à nova criança.

Embora esta ligação geralmente se estabeleça naturalmente e se desenvolva na maioria dos casos, há sempre as exceções. Há muitas mulheres que sentem indiferença, ambivalência ou mesmo antipatia pelo bebé, mas raramente o admitem por medo de parecer “não natural” ou inadequado. As críticas sociais são dolorosas e limitativas (mais uma vez, posso atestar isso): supõem-se, automaticamente, que as mães se vão relacionar com as crias e, quando isso não acontece, elas mesmas se questionam se serão normais e o que estarão a fazer de incorreto. Leiam bem: quando alguma mãe vos confidenciar algo assim, pressuponham que já o pior lhes passou pela cabeça e que se penalizam constantemente.

Há casos em que isto dura anos, daí a importância de estarem alerta. Esta situação pode ser parte de algo maior como uma depressão pós-parto.

Testemunhos que encontrei

Li sobre um caso em que a mãe teve o bebé às 35 semanas e, logo no parto, a parteira lhe disse que não era de admirar o bebé nascer prematuro, sendo ela tão “stressadinha”. A verdade é que esta mãe é gestora numa grande empresa e, como nós vemos diariamente, desligar do trabalho não é tão automático assim, muito menos num cargo mais elevado. Ela diz que isso a marcou logo, e que sentiu que nunca seria uma mãe competente e capaz. A partir daí, foi uma bola de neve: toda a agonia da amamentação, com críticas de profissionais de saúde e de familiares e amigos sobre como o fazer e que ela é que não estaria a fazer bem. Começou a viver arrastada, em dor, dia após dia, não vendo sequer os avanços que o filho fazia no desenvolvimento (nem querendo participar nos mesmos). Pegava nele por necessidade e chegou a deixá-lo a chorar horas seguidas porque receava que os pensamentos mais violentos que tinha se tornassem realidade. Falou com o marido sobre o que sentia, e ele diminuiu-a; achou que era na cabeça dela e que não se relacionava porque não queria. Entretanto ela voltou ao trabalho e inundou-se dele ao máximo porque não queria estar em casa com o filho.

Só por volta dos 18 meses (imaginem lá) é que, puro acaso da vida, ela estava a ver um programa de televisão sobre depressões em mães e algo lhe fez sentido. Procurou novamente ajuda, mas não no marido. Descobriram que, ainda por cima, o filho tinha lacunas no desenvolvimento provenientes de malformações cefálicas que não haviam sido detetadas.

Este caso é obviamente bastante grave, mas ainda há piores desfechos. Aqui, a mãe teve que fazer acompanhamento médico e com medicação, e diz que as verdadeiras mudanças vieram quando o marido mudou de atitude. Atualmente, já não está dependente de medicações (o filho tem mais de 3 anos já) e tem sempre tempo dedicado a si na agenda. Assim, conseguiu trabalhar o vínculo com o filho, que se pensava não ser possível, e hoje têm uma boa relação. Ela não perde uma consulta, uma reunião na escola e tira até tempo para brincar com ele.

Toda a pesquisa que fiz permitiu-me ver que a ligação emocional verdadeira entre mãe e filho é construída gradualmente ao longo de largos meses e que, se não estiver lá à primeira tentativa, é importante não desistir. Se não sentirmos logo a ligação física em momentos como a muda da fralda, o banho e a alimentação, sabemos que vamos ter que trabalhar isto, mas convém termos calma e percebermos o processo.

Esta ligação aos pais é um dos alicerces do desenvolvimento emocional posterior, que irão permitir à criança estabelecer uma conexão emocional segura com um adulto a partir dos três ou quatro anos. Quando isto não se verifica, aumenta a probabilidade de terem problemas de relacionamento mais tarde.

Mesmo quando uma mãe já teve mais filhos (e é o meu caso), pode haver este distanciamento. Eu li sobre um caso de uma mãe de 35 anos, ex-enfermeira em Inglaterra, que, quando teve a terceira filha só queria que a tirassem de dentro dela. Narra que a segurou por alguns minutos, mas o desconforto físico só a fazia querer tomar um banho e sair dali, para não ouvir o choro dela. Diz que achou a filha feia, não queria pegar nela, e que esses sentimentos se arrastaram por várias semanas, ao contrário do que acontecera com os dois filhos mais velhos, que acarinhou desde o nascimento.

Nas suas palavras: “eu deixava-a no carrinho e pedia à minha mãe para a abanar, para que ela dormisse o maior tempo possível. Sentia que não a amava como aos irmãos, então eu compensava amamentando mal ela começasse a chorar, ainda que soubesse que não era o ideal. Ficava ressentida com ela por me acordar e tinha ciúmes do  quanto o meu marido dormia. Até que um dia disse ao meu marido que Se ela nunca mais acordasse, eu não me preocuparia, porque pelo menos eu conseguiria dormir. Ele ficou chocado, é claro, e disse que nunca mais me queria ouvir a falar assim.”.

O humor desta enfermeira já vinha a piorar desde a gravidez, quando deixou a sua medicação normal por causa da gestação. Isto fez com que ela se focasse demasiado na gravidez e na amamentação, e, com o parto, só piorou.

Quando a filha tinha 3 meses, ela sentia-se mesmo no fundo do poço e, numa discussão com o marido, pegou na bebé, enfiou-a no carro num instinto de fuga. Nesse momento, percebeu que não lhe queria falhar. Acabou por pegar na filha, num pranto, e depois de vários minutos a desabafar com ela conseguiu acalmar-se e decidiu pedir ajuda médica a um profissional que não a conhecia. Medicada, conseguiu amamamentar e o seu humor também melhorou. Tal como no primeiro testemunho, houve um ponto específico em que tudo impactou: a bebé teve uma pneumonia e ela achou que ela iria morrer. Ao senti-la tão vulnerável, toda a culpa se abateu, mas em vez de se ir abaixo, decidiu que passaria a estar para ela a 100%.

Aceitar ajuda de outras pessoas é muito difícil porque há um enorme estigma associado às dificuldades pós-parto. É fácil dizer que “antigamente as mulheres tinham os filhos e iam logo trabalhar” (também muitas mulheres e bebés morriam pelo caminho, mas isso deve ser um detalhe) ou que “isso é só impressão tua” ou, a melhor de todas, “a depressão pós-parto agora é uma doença da moda”.

O que nós podemos fazer e o que os outros podem fazer por nós

Há um desafio que poucos pais novos conseguem antecipar, especialmente as mães que amamentam em exclusivo: a solidão dependente.

Podemos pensar que ter um recém-nascido ao lado (ou na barriga) 24 horas por dia levaria apenas ao desejo de tempo sozinha, mas a verdade é que, ao passar dos dias, sempre iguais, sozinhas (com o bebé), as mães podem sentir-se extremamente desconectadas de todos os outros – incluindo o cônjuge e o bebé.

Quando o meu marido me diz que “está bom tempo, podes sair com a bebé” juro que a primeira imagem que me vem à cabeça é da minha mão a dar-lhe uma lapada. Não sinto que um bebé seja companhia; por isso, as minhas licenças foram (e esta ainda está) passadas a contar os dias para voltar ao trabalho. Somos mães apanhadas por sentimentos de isolamento.

Neste caso, ainda que não amamente, a bebé continua dependente de mim, porque sou a progenitora que ficou em casa. Em casa, meses, sozinha a maior parte do tempo. Quando saio, tenho que levar a bebé, por isso, ainda que ajude (e é algo que os outros também podem fazer por mim), sinto na mesma que vou com a minha sombra, o que não ajuda a que me relacione com ela.

Depois de meses em que senti que a minha barriga estava do tamanho da Alemanha e que era um anexo do meu corpo, ainda apanhei um susto por causa da infeção por CMV. Houve vários momentos em que a minha preocupação nessa altura foi “como é que a minha vida vai ser daqui para a frente se esta criança tiver uma deficiência grave? Como é que vou conseguir que não limite a vida da minha filha mais velha?”. E sim, pensava isto e sentia-me culpada (acreditem que pensei coisas bem piores do que isto) e não dormia bem, tinha dores no corpo e a cada dia só queria que isto terminasse. Não tinha desejo de pegar nela, mas sim de a deixar de ter na minha barriga. O nosso contrato de arrendamento não estava a resultar e estava a levar-nos por maus caminhos.

Claro que estar grávida é quase sinónimo de, de repente, sermos propriedade pública e de termos que, automaticamente, temos que estar felizes. O melhor, provavelmente, teria sido travar os outros e dizer logo que fossem dar uma volta ao bilhar grande, deixando-me em paz, mas só a antecipação dos olhares é suficiente para nos tirar essa ideia da cabeça e nos fazer entrar no teatro todo.

Isto, juntando às consultas, aos toques e tudo o mais, não ajudou.

A minha filha nasceu de cesariana – e poupem-me aos comentários de “é tão mais fácil com uma cesariana” – e eu entrei numa espiral depressiva em que não me sentia em mim. Sentia revolta e tristeza. Queria sair do hospital e estar sozinha com a minha outra filha, queria deixar de sentir dor. Não houve noite naquele hospital em que eu dormisse e em que não chorasse em silêncio. E claro, sentia-me culpada. Sentia que, com o nascimento, ia ser melhor, que me iria apaixonar por ela como já estava pela irmã desde o início. Mas não. E estes sentimentos continuaram em casa (e ainda cá vão estando alguns, mas não os piores).

Sei que a ligação entre mãe e filho é crucial para criar filhos saudáveis ​​e ajustados à sociedade. Assim, o vínculo parental está ligado a tudo, desde a química cerebral da até aos relacionamentos adultos.

Além da pressão (é só um vínculo crucial, nada de grande!), outro ponto que pode impedir ligação é o trauma do parto, de que já vos falei e que o estudo comprova. À medida que os meses passam, eu espero que o meu desconforto também desapareça, um dia, porque sempre que sinto uma dor ou desconforto o meu cérebro liga um botão que atribui culpa à minha filha. Não é racional, nem é propositado, mas tem implicações sérias. Não me basta empurrar esse pensamento para longe; estou a trabalhá-lo para que não apareça de todo, mas ainda estou longe de conseguir.

Neste momento, tento controlar o meu humor da melhor forma, porque sei que ainda tenho dois pesos e duas medidas, uma para cada criança. E sinto que toda a gente quer estar com a mais velha – pois, também eu. Sinto que não estou a acompanhar a minha filha mais velha tanto quando seria ideal (ou necessário), porque a energia não me chega e porque a mais nova me dificulta isso.

A hora de dormir da mais velha é constantemente dificultada e atrasada pela mais nova, e eu sinto que tenho que me transformar num polvo para conseguir lidar com isto. Coisas simples, como conseguir dar a mão à mais velha enquanto ela adormece, tornam-se complicadas quando temos uma criança de 2 ou 3 meses a chorar e a estrebuchar por tudo quanto é lado ao nosso colo. Acreditem, só me apetece esquecer-me que ela existe e focar-me na mais velha.

No meio disto tudo, pelo menos consigo controlar pensamentos mais violentos que tenha, mas, pelo caminho, sinto que me falta um confidente. E porquê? Porque, tal como vimos nos casos acima, não é fácil partilhar isto e mais difícil ainda é encontrar quem nos perceba e consiga reagir de acordo.

Uma palavra de incentivo

Há um livro do Richard Woolfson do qual li algumas passagens há tempos (desculpem, mas não me estou a recordar do título do livro!) em que ele afirma que quando os pais se preocupam com o vínculo que têm com filhos, a maioria passa por momentos difíceis em que não vêm o que estão a fazer bem. Ele acredita que todas as mulheres têm potencial para ser uma mãe cuidadosa e carinhosa, mas algumas acham a maternidade mais difícil e castradora do que outras. Não sei se iria ao extremo de dizer que todas as mulheres têm o potencial (mesmo físico) para serem mães, mas percebo a ideia.

Acima de tudo, ele deixa algo muito importante: aceitar quem somos e esforçarmo-nos para nos envolvermos com e na vida da criança, porque as barreiras exigem mas nós conseguimos transpô-las. Diz ainda que poucos de nós se tornam os pais que idealizam ser e que – de forma simpática – temos que perceber que apenas um pai, no mundo inteiro, pode ser o melhor do mundo. O resto de nós terá que se contentar com o segundo melhor.

5 thoughts on “Coisas de que ninguém fala: Quando a ligação não é imediata

  1. Em primeiro lugar louvo-te a coragem de assumires publicamente tudo isto. Vivemos numa sociedade em que todos se acham no direito de dar opiniões sobre a vida dos outros, falar dos antigamentes (no tempo do Salazar não se via nada disto!) em vez de ajudar.
    Só quem passa por elas é que sabe, e não é fácil certamente lidar com tudo isso. Uma gravidez, como diz uma amigo meu, é uma violencia extrema para uma mulher por todas as alterações que passa, por muito que a evolução tenha preparado o corpo feminino.

    No nosso caso, lembro-me de termos tido momentos de stress – tive momentos de despero em que pensei “se não te calas ainda vais voar pela janela – mas sei que a mãe chegou ao fim da licença super cansada e desgastada precisamente por todo o tempo que se passa em torno do bebé.

    É realmente importante que as pessoas entendam que as coisas existem, nem tudo são rosas, mas que com ajuda certa se consegue ultrapassar. Esse é o meu segundo ponto de parabéns, incentivar as pessoas a procurar.

    E como já sabes, as coisas vão melhorar e que dai a nada estás a pensar no 3º (NOT!) Coragem!

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    1. Obrigada pelo teu comentário. Nem pensar que vem aí um terceiro 🤣 Vou passar a usar um cinto da castidade! 😁
      É verdade, é difícil falar, mas sinto que ainda é mais difícil manter cá dentro 🙂

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