“O meu filho tem uma doença rara”

Sabemos que, durante a gravidez, a única certeza é a incerteza. Vivemos em meses de probabilidade, que esperamos que estejam a nosso favor. A cada exame que fazemos, olhamos para os resultados como se aquele fosse o momento mais importante da nossa vida.

No entanto, nem sempre a probabilidade está a nosso favor, e contamos com percalços pelo caminho. A incerteza de tudo é dolorosa, em primeiro lugar. Nem todas as situações se conseguem confirmar através de ecografia ou análises. Muitas vezes, passam-se meses em que não sabemos bem como será a criança a que iremos dar a luz semanas depois, caso tenha havido algum alarme num exame. É, muitas vezes, após o nascimento que sabemos se há algum problema com a saúde dos nossos filhos.

No meio disto, muitos dos casos serao apenas suspeitas, mas há um número deles que vêm confirmar algumas suspeitas e desvendar problemas de saúde com que os pais também terão que aprender a lidar.

Na União Europeia, considera-se uma doença rara quando há menos de 1 caso em cada 2000 pessoas. Segundo o Instituto Ricardo Jorge, “todos os indivíduos com doenças raras compreendem no seu conjunto cerca 30 milhões de cidadãos, ou seja, 6% a 8% da população da UE”.

Além disso, sabemos atualmente que cerca de 80% das mais de 6000 doenças raras conhecidas são de origem genética, e muitas vezes crónicas, podendo pôr em risco a vida do doente ou encurtar significativamente a sua esperança média de vida. Estas doenças têm uma grande diversidade de sintomas, muitos deles que nos podem escapar a uma observação, e variam imenso entre si, o que as torna muito únicas e difíceis de desvendar e tratar.

Ainda assim, nem todas são totalmente incapacitantes; em muitos casos, ainda que com limitações próprias, é possível proporcionar uma vida normal ao doente. Mais difícil é, certamente, lidar com a ignorância e estigmas da sociedade.

O que é um gene?

De uma forma simples, um gene é um segmento de um cromossoma a que corresponde um código distinto. Esse código vai servir para o gene produzir uma determinada proteína ou controlar uma característica, como a cor de cabelo ou dos olhos.

Quando um dos genes sofre uma mutação, é duplicado ou não é formado (completa ou parcialmente) na gestação, o nosso organismo fica incapacitado de cumprir certa função adequadamente.

Hoje vou falar-vos um pouco de um caso específico: a síndrome CTNNB1.

Quis falar sobre esta síndrome em específico porque conheço um pai que tem uma filha lindíssima com esta síndrome super raro: são menos de 150 pessoas no mundo inteiro diagnosticadas. É ele; podia ser eu. Fui ler sobre o tema e é essa informação que vos venho aqui deixar, apesar de vos aconselhar pesquisarem vocês também. Fui direcionada para o site de um grupo de pais / familiares / amigos ligados à doença, que tem informações claras que qualquer um pode consultar.

Esta síndrome refere-se a um problema no gene CTNNB1, no cromossoma 3, que pode não existir ou estar com uma mutação no organismo. Este gene é responsável pela criação de beta-catenina, uma proteína que permite que as células cresçam, se dividam e se especializem corretamente, para além de outras tarefas.

Pensem no nosso alfabeto: com as 26 letras e respetivas variações, podemos criar inúmeras palavras. Agora imaginem que, a dado ponto, deixava de existir o “a” e a partir daí não se podiam formar mais palavras com essa letra. Íamos ter que comunicar na mesma, mas as palavras não iam ficar bem formadas, certo? Ou imaginem que desapareciam os acentos e sempre que os tentassem utilizar, a letra associada mudava para outra diferente. É uma forma muito simplista de vos explicar uma mutação genética, mas é algo deste género: se um determinado gene não existe ou não está formado corretamente, as funções que dele dependem também vão sofrer consequências (podem ser impossíveis de realizar ou então realizar-se de forma estranha, diferente do habitual).

Antes que corram que nem galinhas sem cabeça, há casos em que estes problemas genéticos são hereditários (passam dos pais para os filhos) e há outros casos, como este, em que surge espontaneamente. Mas é importante, acima de tudo, estarmos atentos – seja para que doença for – de sintomas que achemos estranhos, fora do normal, e falar com o pediatra que nos acompanha para verificar se há motivo para alarme.

Esta condição só foi recentemente descoberta: os primeiros casos da síndrome CTNNB1 datam de 2012, e sendo poucos os casos, a pesquisa ainda tem muito caminho para desbravar.

Sintomas e tratamento

A síndrome CTNNB1 está muito ligada ao desenvolvimento intelectual, mas também condiciona o desenvolvimento físico. O cromossoma 3 é importante no desenvolvimento do cérebro, daí que as falhas no gene CTNNB1 causem uma deficiência funcional, associada a problemas de aprendizagem e de memória.

Na maioria dos casos diagnosticados, verificou-se:

  • Atraso no desenvolvimento ou deficiência intelectual
  • Dificuldade na fala
  • Hipotonia (baixo tónus muscular) no tronco e membros inferiores
  • Microcefalia
  • Problemas de visão
  • Características faciais como uma forma distinta do nariz ou lábio superior fino

Até ao momento, não há cura, o que não significa que não haja nada a fazer. Bem pelo contrário: há que diagnosticar e saber tratar o que vai aparecendo. Parece que é um pouco andar às apalpadelas, mas com a raridade da doença, acaba por ser mesmo assim.

Podem aproveitar e ler um panfleto online sobre as manifestações e o que ter em atenção.

 

A Mafalda

Acima, disse que conhecia um caso deste síndrome – a Mafalda. A Mafalda tem quase 3 anos e foi ainda com poucos meses de vida que os pais começaram a perceber que talvez alguma coisa não estivesse bem. Enviei algumas questões ao Bruno e à Mariana, que me responderam com toda a humildade, porque é importante fazer chegar a domínio público a informação que existe sobre a CTNNB1.

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A Mafalda: o primeiro caso (diagnosticado) português de CTNNB1

Mamã, dá Licença? (MDL): Como tem sido o acompanhamento médico desde que houve a suspeita de que a Mafalda teria algo de errado?

Bruno / Mariana (B/M): A primeira suspeição de que algo se passava com a Mafalda partiu de nós, quando começamos a notar que o seu pescoço caia, tendencialmente, sempre para o mesmo lado. Inicialmente, achamos tratar-se de um torcicolo mas, e após ser vista por uma amiga fisioterapeuta, partimos para um possível cenário de hipertonia. A partir desse momento, e após uma consulta com o seu pediatra, que corroborou a opinião da nossa amiga, começaram as consultas em neuropediatria, genética, oftalmologia, pediatria de desenvolvimento, assim como um rol de exames, como ressonância magnética, EEG, análises metabólicas. O corpo clínico, que rodeou, e continua a rodear a Mafalda nesta caminhada, tem-nos acompanhado, sim, mas, muito sinceramente, sentimos, por parte de alguns profissionais, que a determinada altura que se acomodaram a um possível “diagnóstico inconclusivo”. Paralelamente ao corpo clínico, não podemos deixar de fazer referência às terapeutas, essas sim, as grandes responsáveis por a Mafalda pelo incrível desenvolvimento da Mafalda, ao longo destes quase 3 anos.

MDL: Face à inexistência de especialistas conhecedores da síndrome, que apoios têm tido para encontrarem os melhores médicos?

B/M: O diagnóstico chegou-nos pelas mãos do geneticista, que, após o resultado do teste ao exoma completo da Mafalda, descobriu que o problema reside na alteração de parte de um gene, chamado de CTNNB1. Esse gene é responsável pela produção da proteína B- Catenina, uma proteína que funciona na comunicação entre as várias células do nosso corpo. Foi-nos logo dito que era uma alteração raríssima, a única diagnosticada em Portugal, e portanto, com pouco material de estudo. Acho que a partir desse momento, e à medida que íamos falando do diagnóstico da Mafalda com cada um dos seus médicos, estávamos todos no mesmo patamar. Era a primeira vez que ouvíamos a falar de tal síndrome e teríamos todos de investigar um pouco mais. Felizmente a internet permite-nos coisas muito boas, como encontrar imediatamente um grupo internacional de pais de crianças com o mesmo  síndrome. Esse contacto sim, foi fundamental para percebemos os meandros da síndrome e as melhores abordagens terapêuticas.

MDL: Como reagiu a família face à notícia? Têm alguma palavra para dar aos familiares de crianças com o mesmo problema?

B/M: O processo de percepção de que algo se passava com a Mafalda, por parte da família, foi algo gradual e, por isso, quando o diagnóstico foi conhecido, penso não ter sido aquele terrível choque. Essa fase já tinha passado porque, e apesar da condição da nossa filha não ter ainda nome, já todos reconhecíamos de que, efetivamente, algo se passava com ela. Como pais da Mafalda, a sensação que temos é a de que vivemos agora uma fase de “acalmia”. 

Nestes casos, numa fase inicial, e perante um familiar com um problema à vista, todos querem intervir, todos querem mandar os seus palpites, opiniões, dizer qual o melhor caminho a seguir . É uma fase difícil para os pais, porque são bombardeados por todos os lados com indicação de novos médicos, novas terapêuticas e exames inovadores. É um período confuso muito confuso, em que frequentemente nos questionamos se o caminho que estamos a trilhar será realmente o melhor. Quando tivemos finalmente um nome para a condição da Mafalda, e explicamos a mesma à família, a sensação com que fico é a de que paira no ar um certo “alívio” por finalmente ter um nome. Mas sinto também que somo nós, pais, que temos a verdadeira noção das limitações que a alteração do gene poderá trazer à Mafalda e da impossibilidade, porque de facto ainda é um impossibilidade, por ser um síndrome que só há poucos anos foi reconhecido, de um tratamento, para um futuro próximo. Teremos ainda alguns, e quando digo alguns é com esperança de mãe, anos de investigação pela frente.

Os problemas genético são sempre complicados, pelo desconhecido que acarreta, mas um conselho posso dar a todos os pais: investiguem, leiam, procurem uma rede de contactos com a mesma realidade que a vossa, ouçam as realidades de outros pais, que têm filhos com os mesmos problemas dos vossos. Só assim poderemo-nos atrever a ter uma “voz ativa” na melhor terapêutica a seguir.  Confiem no vosso instinto e, acima de tudo, acreditem nos vossos filhos, porque eles têm a capacidade de nos surpreender diariamente.

MDL: Em que medida é que a situação da Mafalda mexe com a vossa rotina? Quais as maiores condicionantes? Encontrar um infantário / escola foi simples?

B/M: Tal como já referi, a nossa realidade não mudou muito, desde que a Mafalda tem um diagnóstico. Isto porque, mesmo sem ter um nome, iniciámos muito cedo a intervenção precoce. As sessões de fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala fazem parte da rotina diária da Mafalda, desde os seus 6 meses. Acho que a nossa família já tem o chip formatado e a Mafalda está perfeitamente habituada a esse chip.

Com a entrada no infantário, esta rotina não se modificou, apenas tentamos ajustar os horários. Agora a Mafalda tem as suas sessões bem cedo, antes de a deixar na escola. E encara-as sempre com a sua boa disposição, e algum mau feitio à mistura. 

A decisão de a colocar tão cedo no infantário (2 anos) veio do aconselhamento da pediatra de desenvolvimento. Não podíamos ter recebido melhor conselho. O desenvolvimento que as crianças têm, em contacto com os seus pares, é para lá de incrível. Claro que um fator que todos os pais devem ter em conta é: sinto-me capaz e segura em deixar o meu filho ao cuidado daquelas pessoas? A relação de confiança é fundamental, principalmente quando falamos de entregar estas crianças a alguém. Quanto a nós, não podíamos ter entregue em melhores mãos, por isso, a questão do infantário nunca foi um problema para nós.

MDL: Que apoios do Estado têm? É fácil chegar à informação sobre eles, ou o processo burocrático é impeditivo?

B/M: Ultimamente, a responsabilidade social é algo que está “na moda”. Por parte do estados, as coisas não são diferentes. A questão da incapacidade e deficiência tem sido, de vez em quando, tema de conversa em assembleia e têm até sido ajustados alguns apoios, com o objetivo de ajustar a sociedade e torná-la mais justa para todos.

A realidade é que uma família com um dependente com necessidades especiais tem bastantes encargos, muitas vezes muito acima do suportável e as ajudas que o Estado liberta são, na prática, uma ajuda, sim, mas uma ajuda que nem de longe equilibra um orçamento familiar.

Se somarmos o subsídio de apoio à terceira pessoa com o de deficiência, perfazemos uma quantia média de 170€. Uma criança com necessidades especiais necessita de mais do que isso.

Depois temos outro grande, enorme problema.  O subsídio multiusos. A maior parte destas pessoas “especiais” necessitam frequentemente de materiais de apoio, desde andarilhos, cadeiras de rodas, suportes adaptados, entre muitos outros. Estamos a falar de equipamentos realmente muito caros, não acessível ao bolso da maior parte dos cidadãos. A Segurança social disponibiliza essa verba, mediante prescrição terapêutica dos centros acreditados para o mesmo. O problema é que, desde o momento em que é feito o pedido até ao momento em que a verba é disponibilizada é muito lenta, tão lenta que, por exemplo, um andarilho que até à data era perfeito para aquisição de marcha de uma criança, passado algum tempo, já é pequeno e já não lhe serve para nada. Estes processos são uma verdadeira dor de cabeça, para os pais.

MDL: Que tratamentos estão a fazer atualmente e quais são os próximos passos? O que é que quem “está de fora” pode fazer para ajudar?

B/M: Neste momento, continuamos com o caminho que temos vindo a fazer. Muita fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. E trabalhar diariamente, nós pais, para torná-la cada dia mais competente na motricidade. Este é o nosso objetivo diário, trabalhar o seu corpo, de forma a que a Mafalda consiga adquirir a capacidade de marcha. A comunicação é algo em que também estamos empenhados em investir. Quando falo em comunicação, falo não só na verbal, mas em todas as outras formas de comunicar. Tendo estes meninos dificuldades da expressão verbal, temos de trabalhar os caminhos alternativos, como a linguagem aumentativa (símbolos, imagens).

Estes são os nossos passos individuais. Abrindo para o sídrome em si,  pertencemos a um grupo internacional de pais, com crianças com este síndrome. O nosso objetivo é dar a conhecer esta alteração, criar awareness, para que, consequentemente, crie curiosidade cientifica. Temos apenas cerca de 150 meninos com este diagnóstico, a nível mundial. é uma raríssima, por isso, queremos, enquanto grupo divulgar. Esse é o grande objetivo. 

 

A comunidade é muito importante em casos destes – it takes a village to raise a child.

A internet e principalmente a possibilidade de interagir com outras pessoas em situações semelhantes acaba por minimizar as distâncias e, ao mesmo tempo, criar uma força maior para um objetivo comum. Em conversa com o Bruno, vejo que todas as informações, por mais triviais que pareçam, são importantes. Por exemplo, fiquei a saber que o caso geograficamente mais próximo do deles está em Espanha, e ainda que a pessoa mais velha com esta síndrome identificada tem 37 anos e foi diagnosticada recentemente, na Holanda.

Se quiserem fazer alguma doação para a causa (ou abrir uma daquelas doações pelo vosso aniversário no Facebook), ide ao site sobre a síndrome ou pesquisem nas redes sociais. Se for no Facebook, podem doar mesmo que não seja na angariação de um amigo; eu já o fiz (prometo que não peço o dinheiro de volta :P).

Vamos então ajudar conforme podemos e vamos partilhar esta informação para que chegue a mais gente – e talvez cause mais interesse na comunidade investigadora e médica. Quem sabe se não se encontram aí casos ainda por diagnosticar que se cruzem com estes pais 🙂

3 thoughts on ““O meu filho tem uma doença rara”

  1. Olá.. Sou a Taís de Curitiba- Paraná.
    Mãe de Méllany Holm
    Gostaria muito de ter contato com essa família. Há dois meses descobrimos que minha filha também tem esse mesmo problema. Ela tem 9 anos, por isso resolvemos fazer o mapeamento genético em nós pais, deu que o pai também tem essa falha genética.

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