A Lara Camarneiro aceitou o desafio de partilhar comigo a sua história sobre a prematuridade da filha. Ter um bebé prematuro nos braços pode não ser o início esperado da viagem pela parentalidade, mas é algo pelo qual muitos pais passam.
“Desde que me entendo por gente que soube que a maternidade era uma condição sine qua non para a minha felicidade e realização pessoal. A minha mãe conta que desde muito pequena, quando questionada o que queria ser quando fosse grande, a resposta imediata era “Bailarina, Escritora e Mãe”! Podemos dizer que já bailei umas coisas, continuo a amar a escrita, embora nunca tenha editado nada, mas efectivamente o meu maior feito foi ter-me tornado Mãe da miúda mais espectacular do Universo!
Penso que nada do que se deseja com este afinco, vem de mão beijada e a minha maternidade foi um processo que fez jus a essa regra. Quis a vida que só engravidasse aos 30, quando já achava que este seria mais um sonho frustrado.
O dia em que soube estar grávida, foi o mais feliz e um dos mais assustadores de toda a minha vida. Em poucos segundos, passei do êxtase de felicidade ao pânico total, quando a ficha me caiu e percebi que seria responsável por aquele ser, desde a sua gestação, à sua sobrevivência, educação e formação de carácter.
E se eu errasse? E se falhasse? e se não fosse boa o suficiente? E se o bebé tivesse alguma deficiência? Ou se até mesmo não vingasse? Tudo isto me passou pela cabeça, antes mesmo de contar a seja quem fosse a boa nova. Mas rapidamente o sentimento de felicidade ganhou ao medo e o sorriso passou a ser uma constante no meu semblante!
A gravidez corria bem, eu não tinha enjoos, nem tonturas e tirando sentir-me um “nariz ambulante”, só tinha vontade comer salada de atum como se não houvesse amanhã. Uma noite, quando já tinha 10 semanas de gestação, acordei com uma dor forte e pontiaguda no baixo ventre que me deixou aterrorizada. Corri ao hospital, onde me foi dito que estaria a ter um “princípio de descolamento” e que precisava de repouso. Cumpri à risca o que me foi pedido e ao fim de duas semanas tive alta e voltei ao trabalho.
Trabalhei durante mais umas semanas, “pavoneando” a minha barriguinha que já se via proeminente e de que tanto me orgulhava. Com 22 semanas, o pesadelo volta a acontecer, mas desta feita com maior intensidade e nessa altura, fui obrigada a ficar de baixa por gravidez de risco, com autorização para fazer esforços apenas para mudar os canais no comando de televisão. Nesta altura, tinha contracções muito frequentes e pouco espaçadas, o que me obrigava a passar a maior parte do tempo na cama. Estranhamente, não estava assustada. Sentia uma paz e uma certeza enormes, que tudo iria correr bem e que aquele bebé que eu já sentia, me tinha escolhido para ser sua mãe, pelo que estava destinado a ser assim.
Muito por culpa do desejo do meu Pai, começámos a referir-nos ao bebé muito cedo como a “Elisa”, e a confirmação de que era efectivamente uma menina só veio adicionar à felicidade que já reinava!
Pelas 30 semanas, as contracções acalmaram um pouco e recebi a visita do meu pai, que na altura vivia no estrangeiro, e que não se encontrava em condições de saúde para conduzir. Num desses dias, ele pediu-me um boleia para ir às compras e embora receosa, assenti. Durante as compras, senti as contracções aumentarem e por isso pedi que agilizasse o processo para que pudesse descansar.
Ao chegar a casa, encontro a minha prima em cuidados, porque o marido que tinha sido sujeito a uma intervenção cirúrgica recente, não se estava a sentir bem. Achando que seria apenas mais um esforçozito, peguei novamente no carro e levei-o ao hospital.
Escusado será dizer, que já não saí de lá. Comecei a perder rolhão mucoso e dei entrada na urgência de grávidas. Após algumas horas de espera, fui vista por uma médica, que ao fazer-me o toque, desencadeou uma hemorragia muito abundante, e aí comecei a perceber o verdadeiro significado da palavra medo. Pouco depois, outro médico que rendeu o turno, deu ordem para o meu internamento imediato e às 30 semanas, fiquei internada, na tentativa de “segurar” a Elisa, o maior número de semanas dentro de mim, para que a maturação dos pulmões fosse completada e ela pudesse nascer sem complicações.
Tomava banho na cama, comia no mesmo sítio e a arrastadeira passou a ser parte do meu quotidiano. Naquelas semanas, vi outras gestantes terem bebés prematuros de 600 gramas e o meu maior terror, era imaginar que a Lisa pudesse nascer assim frágil e que eu tivesse alta e a bebé não, como vi acontecer com tantas mães naquele período que ali passei. Ou ainda que a prematuridade lhe causasse danos irreversíveis, dos quais jamais me perdoaria. Sentia-me responsável, por ter achado que ela estivesse bem o suficiente para que pudesse cuidar doutros que não dela.
Fiz 34 semanas e no dia que se seguiu, os médicos informaram-me que as contracções haviam sido controladas e que eu tinha ganho o direito a levantar-me por um pouco. À minha cabeça só vieram duas imagens – Uma sanita e um chuveiro!
Desfrutei do WC qual princesa, constatei que tinha a cara inchada como se tivesse sido picada por uma abelha (não me via ao espelho há já algumas semanas) e liguei ao pai da criança para que me trouxesse produtos capilares e um estojo de maquilhagem para que me pudesse compor para receber visitas. Em seguida fui lanchar, sentada.
Estava felicíssima a praguejar contra o desgraçado do pai da criança que me havia permitido receber visitas “com aquela cara” com a companheira de quarto, quando senti aquilo que me pareceu uma bola a sair-me pelas pernas a abaixo. E depois outra e outra… Quase sem voz, pedi à Inês, a minha companheira, que espreitasse por baixo do lençol, porque eu tinha demasiado medo para o fazer. Recordo que ela levantou e baixou o lençol em segundos e a cor dela mudou. Disse-me apenas, “Não te mexas, que vou tocar à enfermeira”. Gelei.
Naquilo que me pareceu uma eternidade, fui levada para o bloco por volta das 17h e pude ver o pai da criança a chegar com o dito “kit de beleza” que havia encomendado e ainda tentei fazer a graça do “agora já não preciso disso”, para esconder o medo.
As horas que se seguiram foram umas das mais assustadoras da minha vida. Fui colocada numa sala com soro de indução, embora devido ao meu síndrome de Chron, tivesse uma carta do meu Gastroentrologista a recomendar uma cesariana. As hemorragias não paravam e eu começava a sentir-me fraca e em pânico. Durante esse período a minha mãe ficou comigo, na esperança de assistir ao parto. De cada vez que uma enfermeira vinha trocar os lençóis, eu via a expressão dela de terror, e a sua côr a mudar para um tom acinzentado.
A minha mãe é hipertensa e a dada altura pensei, que aquele que devia ser o dia mais feliz da minha vida, se iria tornar numa tragédia. “Com este sangue todo que estou a perder, o bebé já deve estar morto, eu fico-me no parto e a minha mãe não aguenta o desgosto” – era o que me ecoava na cabeça enquanto tentava fazer um ar relaxado e sorridente e dizer à minha mãe que me estava a sentir bem e que tudo ia correr bem. Deixei de sentir o bebé, e pedi à minha mãe que chamasse alguém, mas era altura da troca de turno e não estava ninguém disponível. A minha mãe tentou descansar-me e dizer que o bebé devia estar a dormir… Não acreditei, mas fingi acreditar para não a assustar mais.
De repente entra um equipa pelo quarto a dentro e a as palavras que retive foram “depressa, depressa, o bebé não respira!”. Eu fui levada para o bloco e só me lembro da expressão na cara da minha mãe e de começar a rezar, todas as orações que me conseguia lembrar naquele momento. Foi tudo muito rápido a seguir, a epidural, as luzes na minha cara, o lençol que não me deixava ver o que acontecia e a sensação do bisturi a cortar-me a barriga. Senti sem dor, quando a tiraram de dentro de mim e não ouvi um choro. Gelei novamente e pedi que ma mostrassem. Eles ficaram com ela por uns segundos e pude ouvir ao longe um esgar de choro, algo quase inaudível, mas que aconteceu. Mostraram-me aquele ratinho cinzento e enrugado que eu pude sentir por fugazes segundos e levaram-na novamente, dizendo que tinham de a levar para “a salinha quente” por ser prematura.
Enquanto me coziam, receei que não a voltassem a trazer, mas graças a Deus, pouco tempo depois, colocaram-na na maca perto de mim e tranquilizaram-me: “Mãe, isto é que é uma prematura despachada, já tem peso (2.250Kg), já sabe respirar, se ela se ajeitar a mamar, não precisa de incubadora e pode ficar ao pé da mãe”. O meu coração inchou de alegria!!! Eu podia pegar no meu bebé!!! A médica finalizou dizendo que o enfermeiro viria de seguida para me ensinar a dar de mamar, já que era “Mãe de 1ª viagem”.
Fiquei a mirar aquele ratinho, qual obra-prima, e a agradecer a todos os anjos e santos por ela ter “as peças todas”. Achei-a tão perfeita, tão linda!! (Hoje reconheço que estava um pouco amarrotadinha ainda e era muito franzina,mas na altura pareceu-me raiar a perfeição!) De repente a Lisa começou a abrir a boquinha, qual peixinho, repetidas vezes. Eu puxei-a para perto de mim e ela agarrou a mama e sem qualquer problema, fez a sua primeira refeição. Quando o enfermeiro chegou, disse-lhe que o meu Ratinho já tinha nascido ensinado.
A Lisa nasceu às 21h42, e na primeira noite, embora extenuada por todo aquele processo, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o “meu feito”, maravilhada e a sentir-me abençoada. A Lisa não chorou e parecia estar mais cansada do que eu. Dormiu pacificamente e só acordou de manhã para mamar, apesar do choro dos outros bebés no nosso quarto. Os dias que se seguiram no hospital foram de testes e para além duma expectável icterícia, a Lisa era um bebé saudável e com seis dias fomos para casa.
Começou por ser seguida semanalmente, mas por estar a engordar 300 gr por semana exclusivamente a leite materno, rapidamente passou ao seguimento mensal. Dormia 9 horas por noite e desenvolvia-se muito bem. Com um ano teve alta da consulta de prematuros e já não era um ratinho franzino, mas o meu ratinho gorducho, cheia de pregas nas pernocas e umas bochechas de dar vontade de trincar!
Mamou até aos 3 anos, nunca teve uma cólica, e só sabia que ela tinha dentinhos novos porque os sentia na mama. Justiça seja feita, foi sempre muito cuidadosa e nunca me feriu os seios com os dentinhos. Tirando otites e as doenças próprias dos primeiros anos, varicela, escarlatina e viroses, a saúde da Lisa foi sempre estável e para prematura não se saiu nada mal!
Hoje, tem 11 anos, 1,60m e calça 40. Uma personalidade forte e um coração enorme. Orgulho-me muito de ter parte activa na pessoa em que se está a tornar e passaria por tudo novamente, para a ter, tal e qual ela é. Perfeita! Para mim.
Lara Camarneiro”